quinta-feira, 25 de setembro de 2014
MAIS MÉDICOS: Exame com 'Fora Dilma' ilustra guerra entre governo e médicos
Era só mais um exame oftalmológico de rotina: "A!", "F!", "W!", repetia o paciente, enquanto tentava enxergar letras cada vez menores. Ao receber o resultado impresso de suas taxas de miopia e astigmatismo, porém, os olhos do paciente saltaram: "Fora Dilma", dizia em letras maiúsculas um trecho do laudo médico.
O caso aconteceu na segunda semana de setembro, dentro da clínica de olhos da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte - hospital cujo atendimento é 100% vinculado ao SUS.
Após a eclosão da história, descoberta pelo jornal mineiro O Tempo, a entidade divulgou uma carta pública, pedindo desculpas à presidente e candidata à reeleição pelo PT Dilma Rousseff, e anunciou abertura de sindicância para investigar o que considerou um "ato de sabotagem" contra a instituição.
As investigações sobre o caso continuam, mas fontes ouvidas pela BBC Brasil afirmaram que dificilmente o responsável será identificado, já que a máquina utilizada para imprimir os resultados dos exames é manuseada por pelo menos dez profissionais.
De qualquer forma, o episódio ilustra a crise entre parte da classe médica e o governo federal, acirrada especialmente após o lançamento do programa Mais Médicos, em julho do ano passado.
A vinda de médicos estrangeiros para trabalhar na atenção básica, como parte do programa, fez com que a principal entidade de representação da classe médica (o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério da Saúde passassem a viver em pé de guerra, em uma situação que se estende por mais de um ano.
Fogo cruzado
Em meio ao fogo cruzado, os cerca de 4 mil brasileiros especialistas em medicina de família - que atendem pacientes nas periferias e nos rincões mais distantes do país e que são os personagens principais neste enredo - afirmam enxergar prós e contras no discurso de ambos os lados.
Conselho e Ministério os representam - mas nenhum deles parece falar sua língua.
Entre os principais fatores de discordância entre o governo e a entidade médica estão o volume de investimentos em infraestrutura de postos de saúde, as políticas de remuneração e formação de profissionais e a vinda de médicos estrangeiros - especialmente os cubanos.
"Por um lado, o programa (Mais Médicos) tornou a atenção em saúde acessível e reduziu mortalidade. Por outro, não veio uma política de Estado de médio prazo", pondera o pediatra e professor de Atenção Básica Luis Cutolo, que ensina na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univale.
Nos dois extremos do comentário do professor estão as posições do governo e do CFM.
"Há cidades no interior onde pessoas morrem de pneumonia porque não têm médico nem penicilina, em pleno século 21. Ora, era necessário uma atitude urgente para fazer com que essas pessoas não morressem", argumenta Cutolo.
"Esses médicos vieram para ocupar espaços que os médicos brasileiros não ocupavam. Mas o governo cometeu uma série de erros estratégicos: não foi claro, não debateu isso com a sociedade antes."
De acordo com a Constituição brasileira, a gestão e os serviços de saúde devem ser descentralizados - portanto, a responsabilidade federal é compartilhada com Municípios e Estados.
Estrangeiros
O médico de família Paulo Klingelhoefer de Sá, que há mais de 20 anos trabalha na atenção básica e hoje é coordenador do curso de medicina da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP), opta pelo meio termo entre os discursos do governo e da entidade representativa.
"O Partido dos Trabalhadores, quando no poder, não criou condições adequadas de contratação, de salário e de condições de trabalho para o profissional. Ele teve iniciativas que foram interessantes, mas não suficientes. Se você não botar dinheiro no bolso do cara para ele ter condição de pagar as contas dele, ele não vai ficar."
Segundo o governo, mesmo com ofertas de salários acima de R$ 20 mil, apenas 12% das vagas foram preenchidas antes da abertura do processo de cooperação com médicos estrangeiros.
Hoje, segundo o Ministério, quase 80% dos mais de 14,4 mil participantes do programa Mais Médicos vêm de Cuba. Ainda de acordo com o governo, 2,7 mil cidades são atendidas exclusivamente por cubanos.
O vice-presidente do CFM novamente bate de frente. "A vinda dos cubanos é parte de um processo de sustentação econômica dessa bela ilha do Caribe", diz Vital. "É um interesse de Cuba, haja vista a resistência natural (dos brasileiros) fundamentada pela falta de condições de trabalho", afirma. "Por isso há dificuldade de preenchimento dos espaços."
O ministério contra-argumenta. "(As localidades atendidas pelo programa) agora têm o médico atendendo, de segunda a sexta-feira, em tempo integral".
Rodrigo Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), critica a "ideologização" da discussão. Segundo o médico, a discussão hoje é muito mais política (direita X esquerda) do que efetivamente construtiva.
"Há um componente ideológico forte, porque as corporações médicas historicamente têm se posicionado mais à direita. E o governo anuncia que vai trazer tantos médicos cubanos, sem validar o diploma e passando o dinheiro direto para o governo cubano. Foi uma declaração de guerra", diz.
Para o médico, o Mais Médicos "tem muitos defeitos", mas vale a pena trabalhar para aperfeiçoá-lo.
"Temos que estar junto para construir algo que é melhor", diz. "Fomos muito criticados dentro da corporação médica por isso."
FONTE: BBC
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