Vinícius Botelho: “Mudanças no Fies contrariam espírito do financiamento estudantil”
Economista defende que a arbitrariedade do critério não seleciona adequadamente os alunos
VINÍCIUS BOTELHO *
03/08/2015 - 08h22 - Atualizado 03/08/2015 11h01
Como recursos são escassos, políticas públicas com o objetivo definanciar a educação superior devem focar nos alunos com maior potencial acadêmico. Todavia, estabelecer uma nota mínima única para todos os cursos financiados pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) está muito longe de cumprir esse objetivo: diferentes cursos requerem habilidades diferentes e, para alguns, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)certamente ainda é uma medida muito imperfeita de habilidade. Sem contar que, para alguns cursos, o critério da nota média em 450 pode ser muito frouxo.
O modelo deve ser redesenhado para que instituições de ensino tenham maior participação no risco dos empréstimos: assim elas teriam incentivo a só conceder o empréstimo aos alunos que elas acreditem que tenham potencial acadêmico relevante. Não podemos negar que as instituições de ensino têm muito mais informação sobre o potencial dos seus alunos do que uma única prova adotada em todo o território nacional. Só precisamos alinhar os incentivos dessas instituições de modo que elas só concedam os empréstimos a quem realmente tem potencial.
Além disso, pouco mais de 50% dos alunos com até três salários mínimos de renda per capita têm menos de 450 de nota média no Enem. Esse percentual é substancialmente menor nas rendas maiores e, como é muito difícil confirmar se a renda declarada é verdadeira, há claros incentivos para que pessoas que não seriam elegíveis ao programa se candidatem declarando rendas menores do que suas rendas reais.
Ao subsidiar as taxas de juros de forma tão agressiva e diferenciar o percentual financiado para patamares muito baixos de renda, são criados incentivos para que as pessoas declarem uma renda menor do que elas efetivamente recebem. E, nesse caso, ou se gasta muito com a verificação dessa renda ou se permite que as pessoas omitam informações. O Brasil tem uma das maiores taxas de juros do mundo, mas o retorno da educação também é alto: será que não podemos, ao menos inicialmente, investir nas profissões mais rentáveis? Considerando o quanto a taxa básica de juros da economia subiu nos últimos anos, esse reajuste da taxa de juros do Fies ainda deixa o subsídio implícito nos empréstimos nos mesmos patamares dos últimos sete anos: nada mudou, mas precisa mudar.
Além do aumento de renda, é inegável o amplo conjunto de ganhos econômicos e sociais que um aumento da escolaridade traria para todo o país: no jargão econômico, a educação superior tem externalidades positivas. Todavia, esse ganho salarial precisa ir além do plano das intenções: ele precisa ocorrer. Assumamos que o objetivo do financiamento estudantil seja aumentar a remuneração da população de baixa renda. Para ele acontecer, o financiamento precisa ser dado para cursos e instituições capazes de oferecer prêmios salariais significativos e para alunos com potencial acadêmico que, na ausência do programa de financiamento, não fariam aquele curso naquela instituição.
Como o Brasil oferece um alto prêmio para a educação superior e tributa parcela substancial da renda, os impactos de longo prazo de um aumento na renda do trabalhador devido a um aumento da escolaridade (e da produtividade) mais do que compensam os subsídios do financiamento estudantil, mesmo considerando que esse prêmio é função da baixa escolaridade da população brasileira (e que, portanto, tende a cair nas próximas décadas).
Evidentemente, o financiamento dos cursos cuja razão entre salário médio esperado e valor das mensalidades é muito baixa pode ficar inviável com maiores taxas de juros. Mas não dá para ignorar a realidade brasileira: não é todo curso que será possível financiar e não são todos os alunos que poderemos atender. É melhor ter umprograma menor e eficaz do que um programa amplo repleto de falhas: hoje estamos perdendo a chance de incentivar o aumento de qualidade na educação superior no longo prazo e de atender com previsibilidade quem realmente precisa do Fies Além disso, esse movimento disciplina o reajuste das matrículas de forma automática, com mecanismos de mercado.
Por fim, alunos de baixa renda também teriam dificuldades para conseguir um fiador para os empréstimos. Isso pode ser resolvido pelo uso da prerrogativa tributária do governo para criar um sistema de quitação com base na renda futura dos devedores (algo que a experiência mundial tem adotado largamente), como numempréstimo consignado: garantir que a renda futura dos alunos será usada para quitação do empréstimo reduz as causas da inadimplência, ligadas a uma conjuntura econômica ruim ou ao insucesso do aluno no mercado de trabalho.
Nesse sentido, é importante priorizar o financiamento daqueles alunos que têm condições de aproveitar melhor a educação superior. Isso, evidentemente, passa por eles estarem em cursos capazes de melhorar sua empregabilidade e remuneração. Duas variáveis-chave para o sucesso do programa, portanto, estão sob o controle das instituições de ensino: a seleção dos alunos e a qualidade do curso.
Elas deveriam monitorar o sucesso de seus alunos no mercado de trabalho, mas é muito difícil saber quanto elas efetivamente se preocupam com isso. De modo a alinhar incentivos, portanto, é crucial que elas assumam uma parcela maior do risco do financiamento estudantil: as instituições devem atuar como sócias do governo no grande projeto de transformar alunos de baixa renda em profissionais bem remunerados e produtivos. Assim os incentivos estarão alinhados em prol da materialização tanto do prêmio salarial que as estatísticas brasileiras de mercado de trabalho prometem como dos benefícios diretos e indiretos do programa à sociedade. Hoje, o governo oferece um seguro para a maior parte desse risco, por meio do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC), de modo que muda pouco para a instituição de ensino se a inadimplência dos seus alunos do Fies é alta ou baixa. Isso precisa mudar.
Todavia, há um risco sistêmico que precisa ser assumido pelo governo: o desemprego da economia. O desemprego tem um forte componente macroeconômico que está fora da gestão das faculdades e é desnecessário dizer o grau de incerteza que existe na concessão de um empréstimo estudantil cujo sucesso depende da conjuntura econômica cinco anos depois da entrada do aluno na universidade. Essa calibração de riscos entre o governo e as instituições de ensino é crucial para o sucesso do programa no futuro.
Em resumo, as mudanças de regras do Fies neste ano foram contra o espírito do financiamento estudantil. Não é reduzindo o percentual financiado, colocando uma nota mínima no Enem e aumentando a parcela de quitação do financiamento durante o curso que as distorções do Fies serão corrigidas. Na verdade, depois de todas essas mudanças as distorções ainda são praticamente as mesmas. É distribuindo adequadamente o risco entre as instituições de ensino e o governo, aumentando as taxas de juros e a cobertura do programa por estudante que o Fies chegará aonde parece pretender.
FONTE: ÉPOCA.GLOBO
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