Quando tinha dois anos e meio, Rúbia já conhecia todas as letras do alfabeto e aprendeu a escrever. Formava palavras com o macarrão de letrinhas que sua mãe, Rosana, havia colocado na sopa. Aos quatro, havia aprendido a ler.
Quando tinha dois anos e meio, Rúbia já conhecia todas as letras do alfabeto e aprendeu a escrever. Formava palavras com o macarrão de letrinhas que sua mãe, Rosana, havia colocado na sopa. Aos quatro, havia aprendido a ler.
Ainda criança, adorava brincar com plantas, como se estivesse fazendo chás e remédios. Sonhava ser médica desde pequena. Deitava uma prima no chão e brincava de examinar. Naquela época, escolheu o nome de doutora que gostaria de usar: Rúbia Toniato.
Mas, a realidade financeira da família era muito diferente dos sonhos que ela alimentava. Quando tinha 12 anos, seu pai, Pedro, decidiu morar no assentamento dos sem terra, na Fazenda Boa Sorte, em Restinga. Ela ia todos os dias para a roça, mas voltava para Franca à noite. “Eles não deixavam eu dormir lá. No começo, a barraca era coberta de lona e tinha muitos ratos. Era perigoso”.
Um ano depois, Rúbia começou a vender produtos da Avon e logo conseguiu o primeiro emprego fixo. Na adolescência, matriculava-se em todos os cursos gratuitos que apareciam. Foi assim que aprendeu espanhol e noções de alemão, na Unesp. Autodidata, tinha facilidade para fixar informações e aprendeu muita coisa sozinha. Sempre estudou em escolas públicas. Depois, cursou biomedicina na Unifran.
Em 2009, apareceu a luz no fim do túnel. Após dois anos de tentativas, conseguiu uma bolsa de estudos, concedida pelo governo cubano a movimentos sociais, como o MLST que ela integra. A vaga foi para a Elam (Escola Latino-Americana de Medicina), em Cuba, na qual estudam estrangeiros de 113 países. Apenas os que obtêm notas consideradas altas, em uma espécie de vestibular e ao longo do ensino secundário, são aceitos.
Fez um empréstimo e viajou sozinha. Morou em alojamento, dividiu quarto com sete mulheres, passou fome. Não tinha televisão e muito menos internet. Recebia uma ajuda de custo do governo cubano em torno de R$ 10 por mês. Conseguia se manter com a ajuda que os pais enviavam. No começo, eram R$ 70, R$ 80. “O dinheiro, além de curto, chegava reduzido pela metade por causa das taxas cobradas. Nos últimos meses, meus pais conseguiam me enviar um pouco mais e eu recebia entre R$ 200 e R$ 300 por mês”. Na primeira vez que voltou ao Brasil, a família teve que vender uma moto que ela havia financiado para pagar a viagem. Apesar das dificuldades, conciliou o estudos e conseguiu, até, aprender inglês em Cuba.
No último dia 13 de julho, após seis anos e meio de estudos na ilha de Fidel, o sonho da menina se concretizou e ela se formou em medicina, aos 30 anos. Na prova final para avaliar os conhecimentos, obteve 98 pontos dos 100 possíveis. Era o passaporte para receber o número de médico e o diploma. Finalmente, ela pôde escrever Rúbia Toniato na sua placa de identificação, como imaginava quando criança. Orgulhosos, os pais e o irmão de 15 anos viajaram para assistirem à formatura. A viagem só foi possível porque o “seu” Pedro conseguiu vender uma produção de milho, que ainda não havia colhido, para um sobrinho. Conheça um pouco da história da sem terra que virou médica.
Como surgiu a oportunidade de você estudar medicina em Cuba?
Fazer medicina sempre foi o sonho de minha vida. Nunca tive a possibilidade de cursar antes porque o dinheiro não dava. Comecei a trabalhar muito cedo e sempre procurei estudar e aproveitar as oportunidades que surgiam. Em 2007, uns amigos me falaram sobre a possibilidade de obter uma bolsa para estudar em Cuba. Eles foram, mas eu não consegui. Foi a luz para um caminho. Comecei a correr atrás e me esforcei muito. Em 2009, me deram a oportunidade de fazer um entrevista na embaixada de Cuba em Brasília, onde fiz provas e fui aprovada.
Consegui a vaga com tudo grátis, a faculdade, moradia e alimentação. Pedi dinheiro emprestado, paguei a passagem e fui com a cara e a coragem. Não sabia onde ia parar, onde ia dormir o que iria comer, mas fui, enfrentei e valeu à pena.
Quem bancava sua manutenção lá?
O suporte financeiro quem me deu, foi minha família. O governo de Cuba ajudava com cem pesos em moeda nacional mensais, que equivaleria hoje a R$ 10. Era com este dinheiro que muita gente lá sobrevivia. Eu tinha a ajuda dos meus pais. Todo o dinheiro que conseguiam na roça, me mandavam. Tinha que racionar e escolher o que iria comer.
Como foi sair de uma fazenda em Restinga, deixar a família e ir morar sozinha em Cuba?
Os primeiros dias foram muito difíceis. Pensei em vir embora nadando. Eu já sabia a história de Cuba, era um país que eu tinha vontade de conhecer. É um pais bonito, mas muito carente. Por mais que a gente passe dificuldade no Brasil, quando saímos é ainda mais difícil. Foi um impacto forte. A gente pensa em desistir, em voltar. Sentia falta da família, dos amigos. Deixei uma vida para trás e comecei tudo de novo. Aos poucos, fui me adaptando. Superação é a palavra.
Onde morava?
Nos dois primeiros anos, fiquei no alojamento da faculdade. No meu andar, eram 121 mulheres de todos as partes da América Latina. Eram só três banheiros. Os quartos tinham as paredes baixas, como se fossem baias, e dava para ver de um quarto para o outro. Eu dividia o espaço com outras sete meninas e eu era a única brasileira. Era uma espécie de internato. A gente só podia sair no fim de semana. Às vezes, tinha dinheiro, mas não podia comprar porque não dava para sair. Passamos fome, sede e frio. A água é horrível. A partir do terceiro ano, consegui alugar uma casa, embora isso não fosse permitido, e as coisas foram melhorando aos poucos. Foi um risco, pois se fosse pêga pela imigração, poderia ser deportada.
Como foi chegar em um país que sofre embargo econômico?
Lá, a gente aprende a economizar tudo. Não jogamos nada fora. Até o potinho do sorvete que a gente toma, guardamos porque vai servir depois. Aprendemos a dar valor a tudo, ao que tem e ao que não tem. Acessar a internet ou ligar a televisão são coisas banais em nosso país, mas lá eu fiquei o tempo todo sem. Lá, a comunicação é muito difícil e cara. A única coisa que eu tinha era meu computador. Para passar as horas, eu pegava algum pen drive com arquivos, filmes com amigos, algumas músicas ou livros.
Como eram as aulas?
Em Cuba os estudantes aprendem com o paciente, na prática. Quando começamos em ciências básicas, os dois primeiros anos são com aulas tradicionais, em classe, com professores. Uma vez por semana, a gente ia para o hospital, que é um policlínico, tipo do pronto-socorro “Janjão”, onde tem várias consultas, urgência e emergência. Era como se fosse um estágio. No terceiro ano, já somos médicos, temos nossos pacientes e o GBT, que é a equipe médica. A cada ano, você vai fazendo de acordo com as especialidades. Por exemplo, hoje você está em clínica médica no hospital. Dentro de dois meses, vai fazer na maternidade... Você vai rotando, conhecendo e estudando na prática. O que chegar, você tem que pegar e resolver. Peguei pacientes com sarna, lepra, Aids, vítimas de graves acidentes, fiz partos e até estágio em manicômio.
Como é o teste final a que os estudantes são submetidos?
Trata-se de uma prova estatal prática e escrita que é em nível nacional. Eles aplicam a prova para ver os seus conhecimentos depois de graduado médico. Se você não for aprovado, você não recebe o seu número de médico, o diploma, e tem que fazer uma espécie de dependência. Felizmente, de cem pontos possíveis, consegui fazer 98. Foi a maior pontuação do tribunal que me avaliou.
O que falta para você começar a clinicar no Brasil?
Esse é o mais difícil. A gente sai de lá médico e chega aqui no Brasil desempregado. Todo mundo que se forma no exterior, precisa fazer o Revalida. A prova é feita todos os anos, são exames teóricos e práticos. Só após a aprovação, é que eles dão o CRM para a gente. A data da prova deste ano ainda não foi marcada. Outra opção que tenho é entrar para o programa Mais Médico do governo federal, que dá três anos para se obter o Revalida, mas temos que esperar surgir vagas. É um processo lento que deixa a gente para baixo, mas tenho fé que logo vou poder trabalhar. Não consigo ficar parada.
O fato de você ter se formado fora e voltar no mesmo momento em que médicos falsos foram descobertos trabalhando em Franca, a prejudica?
É uma situação chata, que atrapalha, sim, mas as pessoas precisam saber diferenciar. Sou uma médica verdadeira, estudei em uma escola muito conceituada e me formei, tenho diploma. A medicina em Cuba é respeitadíssima. O que aconteceu em Franca foi uma falta de respeito, coisa de pessoa sem consciência. Os pacientes deixam suas vidas nas mãos do médico, te colocam a confiança máxima, que é a própria vida. Brincar com isso, é inaceitável. Precisa haver uma punição muito forte. Em Cuba, nunca ouvi falar de médico falso atendendo pacientes. Cheguei aqui e fiquei assombrada.
Quando criança, você sonhava ser médica. Agora que se formou, qual é o seu sonho na medicina?
Quero trabalhar com o povo, fui formada para isto. Cuba forma a gente para trabalhar com a população carente, que não tem acesso aos médicos, que não pode pagar. A única maneira deles agradecerem é com a sinceridade do sorriso. Como ficam felizes com o atendimento! Eu quero trabalhar com isto. No momento, não penso em ter um consultório, quero me especializar em gineco-obstetrícia, que é a área que mais gosto. Amo fazer parto, trazer a vida. Acho isto muito bonito. Agora, o que eu quero mesmo é trabalhar como eu trabalhava em Cuba, com a população que confia as vidas nas minhas mãos. Quero retribuir essa confiança que eles me darão em forma de muito respeito e de um atendimento excelente.
O que significa para uma pessoa que passou dez anos em um assentamento de sem terra, lembrado por muitas pessoas apenas pelas ocorrências criminais, voltar como médica?
No começo, muita gente dizia que meu pai era louco de trazer a gente para a fazenda Boa Sorte. Muitas vezes, tínhamos que dormir na cidade e ele ia sozinho para fazenda porque a moradia aqui era uma barraca coberta por plástico e onde entravam muitos bichos. A gente não tinha carro. Foi foi muito difícil. Em todos os lugares, há pessoas boas e ruins. Muitas, infelizmente, acabam se envolvendo com a criminalidade, mas não é uma regra. Aqui, tem muita gente boa, que veio para cá para seguir em frente e conseguir evoluir. Minha família mesmo não tinha nada e o movimento deu muita coisa pra gente. Através do movimento é que eu fui estudar em Cuba. As pessoas precisam abrir a mente, não tirar falsas impressões e não avaliar o próximo por pré-conceitos. O assentamento não produz apenas produtos agrícolas. Ajudou a produzir grandes profissionais também.
FONTE:http://gcn.net.br/